I.
NO DEBATE NA BAND que terminou na madrugada de sexta-feira (10), o deputado federal Cabo Daciolo (Patriotas-RJ) fez uma pergunta a Ciro Gomes mencionando a URSAL. O que é a URSAL? É a União das Repúblicas Socialistas da América Latina, um plano de integração dos países da região sob um regime comunista. A ideia é universalmente tachada de delirante por todos que nunca ouviram falar dela.
II.
De 15 a 17 de julho deste ano foi realizado em Havana o 24º Encontro do Foro de São Paulo. Dilma estava lá. Gleisi estava lá. A participação das madames está comprovada em fotos publicadas nas redes sociais da própria presidente nacional do PT. Elas aproveitaram a oportunidade para reforçar a campanha internacional pela libertação de Lula, que já convenceu até legisladores americanos, incluindo o senador Bernie Sanders.
O encontro foi muito real e amplamente fotografado e documentado. Dilma deu uma entrevista a uma TV cubana, transmitida ao vivo pelo Facebook, na qual exibiu seu portunhol escorreito.
A campanha pelo “Lula Livre” tem grande repercussão nas redes sociais brasileiras. A presença das divas Dilma e Gleisi no Foro em Cuba, estranhamente, não teve.
O texto da Declaração Final do Foro de São Paulo deste ano expressa apoio aos governos de El Salvador, Nicarágua e Venezuela, todos os quais estão usando de violência contra a oposição. E deixa claro o projeto de integração que os partidos-membros têm em mente. Dois trechos: “Sembrar la idea integracionista en la conciencia de nuestros pueblos (…) e impulsar esfuerzos que permitan avanzar en la integración soberana de la que Martí llamó Nuestra América”. A referência é ao livro Nuestra América (1891), do político cubano José Martí. Numa vibe “o inimigo agora é outro”, o texto fala para as novas repúblicas latino-americanas que, uma vez obtida a independência das métropoles europeias, o desafio passa a ser a resistência às forças imperialistas dos Estados Unidos.
Nesta quarta-feira (15), vai completar um ano este tweet de Lula, publicado quando ele ainda estava solto:
O que eu puder contribuir para avançar na construção da chamada Grande América vou fazer. Estivemos perto de fazer algo muito importante.
— Lula (@LulaOficial) August 15, 2017
Portanto, seja chamada de “Grande América”, “Nuestra América” ou URSAL, a integração dos países da América Latina sob regimes socialistas está no horizonte desde 1990, quando o Foro de São Paulo foi criado por Lula e Fidel Castro – poucos meses após a queda do Muro de Berlim. A motivação é mais do que óbvia: construir na América Latina o que havia desmoronado no Leste Europeu.
Já listei as inúmeras consequências práticas do Foro de São Paulo em outro artigo: centenas de bilhões de dólares emprestados pelo BNDES aos regimes amigos; os esforços combinados para alterar as constituições dos países para permitir reeleições ilimitadas; o programa Mais Médicos, que finge ser de saúde mas é um programa de política externa; o uso da Embaixada do Brasil em Tegucigalpa como quitinete e muitos outros.
Poucos dias após o PT aprovar, junto com seus compañeros, o texto apoiando o governo da Nicarágua, a estudante brasileira Raynéia Gabrielle Lima foi morta a tiros em Manágua, ao que tudo indica por uma milícia pró-Ortega. O site do Foro de São Paulo, que publicou várias declarações recentes de apoio a Nicolás Maduro pelo suposto atentado ao presidente, não falou nada sobre Raynéia. Nem a turminha brasileira do lacre e da URSAL.
III.
Nesta terça-feira (7), dois dias antes do debate na Band, a impichada Dilma Rousseff esteve na UFMG para abrir um “curso do ‘golpe'”, mais um entre tantos que proliferam nas universidades públicas. Este, é verdade, tem algo especial. É coordenado por ninguém menos que o professor Thomas Bustamente, que ficou nacionalmente famoso em 2016, ao ser citado por José Eduardo Cardozo na Comissão do Impeachment do Senado como “Thomas Turbando Bustamente”.
O clima na UFMG mais parecia um show da Anitta, tamanha a empolgação e energia das centenas de fãs ali reunidos. A impichada falou com muita fluência durante mais de uma hora, narrando uma longa tese sobre o “golpe”. O “golpe”, quem diria, foi aplicado porque o Brasil não estava seguindo o “receituário neoliberal”, e consiste em várias etapas. As “antirreformas” e a prisão de Lula seriam a terceira e a quarta etapas do “golpe”.
O mais espantoso: o “golpe” foi aplicado por “eles”. Em mais de uma hora de palestra, Dilma não se importou em identificar quem são “eles”, seus métodos, quais suas motivações, e como convenceram deputados e senadores a votar pelo impeachment, ou ainda, como esses mesmos “eles” também foram capazes e são responsáveis pelas “antirreformas” e pela prisão de Lula.
Apesar do erro primário de discorrer sobre uma tese sem sujeito definido, Dilma foi entusiasticamente aplaudida várias vezes pelos universitários, e os analistas de plantão (os mesmos que ignoraram a presença de Dilma e Gleisi em Havana, e aliás o Foro de São Paulo como um todo) não produziram uma só crítica chamando a atenção para esse minúsculo detalhe.
A mesma esquerdalha que aplaudiu com gosto a tese sem sujeito de Dilma agora ergue o pincenê para ridicularizar a menção de Cabo Daciolo à URSAL, cuja manifestação concreta foi visitada pela própria Dilma há menos de 30 dias.