Acervo

O dia em que o Senado brasileiro testemunhou um assassinato

Essa história tem três personagens principais:

  • Arnon, 62 anos, filho de um senhor de engenho, ganhara importância no estado 27 anos antes, quando assumiu a direção da Gazeta de Alagoas.
  • Péricles, 67 anos, era delegado da polícia em Maceió quando a família atingiu notoriedade na Revolução de 1930. Contudo, apenas 33 anos depois protagonizaria aqueles acontecimentos.
  • E José, um manauara de família árabe que se dedicava ao comércio em Brasiléa, no Acre – que hoje não chega a ter 25 mil habitantes, sabe lá quanto tinha em 1963.

Rumo a Brasília

Péricles fora eleito deputado federal em 1945, antes de governar Alagoas em 1947, mas sem conseguir fazer o sucessor.

Arnon seria simultaneamente eleito deputado federal e governador em 1950 – não sei, só sei que foi assim –, mas optaria por sentar na cadeira que Péricles ocupava havia 4 anos.

Em 1958, Péricles seria eleito senador pelo PST, feito que Arnon só atingiu em 1962, pelo PDC também alagoano.

Quanto a José, deu “sorte” no “azar” alheio: quando José Guiomard tirou uma licença para cuidar da saúde, o “jovem” de 39 anos, na condição de primeiro suplente, passou a ocupar uma das cadeiras do Senado, ainda que por pouco tempo. Era 6 de julho de 1963.

O Desafio

O discurso feito por Péricles, em 7 de outubro daquele ano, não foi publicado no Diário do Congresso por ordem de Auro Moura Andrade, então presidente do Senado. Em 22 de novembro do mesmo 1963, o senador se queixou em carta ao ministro da guerra prevendo o que aconteceria 12 dias depois: “Sei que tramam contra mim os ricos criminosos e certos poderosos ocasionais. Mas não recuarei um milímetro, porque a minha vida, até o último alento, foi, é e será dedicada à nossa pátria.”

Naqueles dias, Péricles usou a tribuna do Senado para chamar Arnon, seu inimigo político em Alagoas, de ladrão. Aproveitou para desafiá-lo a responder-lhe “de frente” no mesmo microfone. E, duvidando da coragem do adversário, prometia que “não escutaria sem reação nenhum insulto“.

Foi quando Arnon achou prudente andar com uma “Smith Wesson 38” na cintura, algo que não podia ser recriminado por Péricles, uma vez que reconheceu na coletiva ao final do fatídico dia: “Num país como este, onde os ladrões andam soltos, andar armado é uma medida de defesa”.

Dezembro, portanto, começou com Arnon se inscrevendo para usar a tribuna na tarde do dia quatro. Fazia, inclusive, questão da presença do inimigo.

O conflito

Na data agendada, Péricles tomou café se dizendo disposto a responder à altura a “aquele canalha, aquele crápula, aquele espião“. Mas nada comparado à tensão vivida pelo pai de Arnon, ouvinte de um telefonema durante o almoço no qual prometiam: se o filho comparecesse à sessão, seria assassinado.

Brasília sabia que algo ruim estava por acontecer. De tal forma que a segurança da casa passou a revistar todos os que nela entravam – exceto os senhores senadores.

Conforme agendado, Auro Moura de Andrade concedeu às 15 horas a palavra a Arnon, mas com uma severa advertência: se houvesse conflito, aplicaria a lei de maneira inflexível. O advertido, que chegara sorrindo, assumiu um semblante assustador ao se aproximar do microfone. Neste momento, Péricles, que também entrou armado na casa, ficou de pé.

O “palestrante” pediu permissão aos colegas para falar “de frente” para Péricles, que aceitou a provocação e partiu em disparada na direção da tribuna aos gritos de “canalha”. Em seguida, Arnon sacou lá do alto o revólver e, a cinco metros de distância, descarregou a primeira de três balas.

Rápido como uma bala

Arnon não acertou o alvo pois Péricles, mesmo aos 67 anos de idade, jogou-se no chão já sacando o próprio 38 cano longo. As cadeiras do Senado tinham virado trincheiras, com ambos os pistoleiros mirando o adversário, mas só o primeiro puxando o gatilho por outras duas oportunidades. Porque João Agripino – tio de José Agripino, presidente do Democratas – se jogou em cima de Péricles tomando-lhe o revolver antes que qualquer tiro fosse revidado.

Coube ao presidente do Senado exigir ordem convocando a segurança da casa a retirar do ambiente os dois arruaceiros. Mas, somente após a ação dos seguranças, os parlamentares perceberam que o segundo tiro trespassou o intestino e a veia ilíaca de José, o tal manauara de família árabe, que estava duas filas atrás do alvo do atentado.

Lei flexível

Duas horas depois, Péricles deu uma coletiva direto do gabinete do comandante da 11ª região militar, onde se encontrava preso. Foi levado para lá pelo líder do PTB, Artur Virgílio Filho, pai de Artur Virgílio Neto, prefeito de Manaus. Aproveitou a ocasião para chamar Arnon de “tarado”, “louco” e “ladrão”. E jurar que, se não o contivessem, teria “comido o fígado” do inimigo.

Enquanto isso, Arnon era conduzido ao gabinete do ministro da Aeronáutica por um personagem bem conhecido do Brasil de hoje: o então deputado federal Plínio de Arruda Sampaio – mas nada falaram à imprensa.

Ao final do 4 de dezembro de 1963, foi anunciado no Hospital Distrital de Brasília que José Kairala, o suplente de senador que se preparava para no dia seguinte devolver o cargo ao titular eleito pelo Acre, deixava viúva uma esposa grávida, além de três filhos órfãos que tinham de dois a seis anos de idade.

Presos em flagrantes, os envolvidos foram processados. Mas o cárcere seria curto. Péricles continuou armado mesmo dentro do presídio, para máximo constrangimento da segurança do local. Apenas cinco meses depois, o Tribunal do Júri de Brasília inocentaria ambos, que não seriam cassados e concluiriam os mandatos como se nada tivesse acontecido.

O registro em áudio

Um áudio publicado no YouTube registra os acontecimentos aqui narrados. A gravação começa com a abertura da sessão de 4 de dezembro de 1963. Ouve-se primeiro o longo alerta feito por Auro Moura de Andrade, então presidente do Senado. E confirma-se que o discurso de Arnon de Mello mal se iniciou, quando foi interrompido aos gritos por Silvestre Péricles. Na sequência, o primeiro dos três tiros disparados.

Auro Moura de Andrade

“Primeiro orador inscrito é o senhor senador Arnon de Mello. Antes de dar a palavra à sua excelência, a presidência precisa declarar que manterá a ordem e o respeito indispensáveis do Senado e os limites máximos de sua força. Que se, porventura, entre as instâncias nos corredores desta casa alguém perturbar a ordem, será posto imediatamente em custódia. Se desatendidas as advertências da mesa, e se houver qualquer ferido, será imediatamente após o inquérito promovido a responsabilidade e, inclusive, com a lavratura do auto de flagrante indispensável entregue às autoridades competentes. O senhor senador Arnon de Mello tem a palavra.”

Arnon de Mello

“Senhor presidente, permita a vossa excelência que eu faça o meu discurso ao [INCOMPREENSÍVEL] na direção do senhor senador Silvestre Péricles de Góis Monteiro que ameaçou de me matar hoje ao começar hoje o meu discurso…”

[GRITOS DE SILVESTRE PÉRICLES]

[PRIMEIRO TIRO]

[GRITARIA IMCOMPREENSÍVEL]

[SEGUNDO TIRO]

Auro Moura de Andrade

“Guarda!”

[GRITARIA]

[O AÚDIO PARECE SOFRER UM CORTE]

Auro Moura de Andrade

“Os guardas retirem do plenário o senhor senador Silvestre Péricles, e solicito que também façam o mesmo com o senhor senador Arnon de Mello. A sessão está suspensa!”
[O AÚDIO PARECE SOFRER UM CORTE]

Auro Moura de Andrade

“A sessão se completará em sessão secreta. Lamentavelmente venho a comunicar ao senhores senadores que há um senador ferido, o senhor senador José Kairala. A sessão será suspensa, a presidência irá tomar conhecimento da extensão do ferimento recebido por aquele senador. Em seguida, a sessão voltará a funcionar em caráter secreto para todas as providências indispensáveis. A repressão ao gravíssimo ato que acaba de ser realizado nesse plenário…”

[FIM DO REGISTRO]

Epílogo

Silvestre Péricles de Góis Monteiro migraria para o MDB após o golpe militar, mas perderia a eleição para deputado federal em 1970. Morreu antes de participar de uma nova campanha.

Diferente de Arnon Afonso de Farias Mello. Após o golpe militar, ingressaria no Arena, seria reeleito em 1970, reconduzido ao cargo pelos ditadores em 1978 e morreria “senador biônico” em 1983, aos 72 anos de idade. Seu filho, Fernando Collor de Mello, seria o primeiro presidente eleito pelo voto direto na Nova República.

Creusa da Silva Kairala, a viúva de José Kairala, nove anos após processar Arnon e Péricles, passaria a receber uma pensão abaixo do salário mínimo da época. Por isso, trabalharia até 1987, quando completaria 60 anos de idade. Vinte e cinco anos depois do assassinato, uma indenização exigida pela família ainda estava enfrentando chicanas por parte da União. Nesse meio tempo, recebia uma pequena quantia da Previdência dos Congressistas, além bolsa de estudos para o segundo grau dos quatro filhos. Mas o grosso da renda da senhora vinha da lavagem de roupa e trabalhos como babá.

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Publicado por
Marlos Ápyus