I.
O QUE FOI FEITO PARA DAR ERRADO dificilmente dá certo.
Vamos pensar no complicado divórcio que se revelou o Brexit. O debate é longo e difícil em grande parte porque a proposta foi pensada para não ir pra frente.
Em 2012, o então primeiro-ministro David Cameron assinou o Acordo de Edinburgo, lançando as bases para o referendo da independência da Escócia. No ano seguinte, dobrou a aposta e prometeu um referendo a respeito da saída do Reino Unido da União Europeia caso os conservadores vencessem a eleição.
O referendo da Escócia, realizado em setembro de 2014, deu “não”, por 55% a 44% dos votos. A beleza do “não” é que não dá trabalho nenhum. Ninguém precisou decidir qual seria a moeda da Escócia, como e onde ela abriria embaixadas, se teria armas nucleares, etc. Cameron foi dormir feliz.
Partidário da permanência de seu país em uma UE “reformada”, Cameron fez campanha pelo “Remain” no referendo do Brexit, realizado em junho de 2016. Com a vitória do “Leave”, anunciou sua renúncia. Hoje o país e a UE enfrentam um complicado divórcio que por coisa de 1 milhão de votos poderia nunca ter acontecido.
II.
O Mais Médicos nunca foi concebido como programa de saúde. Publiquei isso em julho, ao criticar um vídeo de William Waack. Em agosto, em artigo sobre a famosa “URSAL” de Cabo Daciolo, listei o Mais Médicos entre as consequências práticas do Foro de São Paulo.
A reportagem da Folha publicada na noite desta terça (20) apenas comprova o que já ficava claro em gravação divulgada pelo Jornal da Band lá em 2015: o objetivo primário do programa sempre foi enviar dinheiro à ditadura cubana.
Os telegramas obtidos pela Folha apenas comprovam que a iniciativa partiu de Cuba e que a triangulação com a Opas foi decidida de última hora para evitar discussão no Congresso. Mesmo assim Cuba rejeitou inicialmente a ideia, porque os recursos passariam por Washington, sede da organização. O então ministro Alexandre Padilha, candidato a governador de São Paulo em 2014, “propôs que os recursos fossem transferidos entre os escritórios da organização, sem passar pelos Estados Unidos”.
Em 2012, a vice-ministra de saúde cubana, Marcia Cobas, “disse que só faria nova parceria se o Brasil impedisse os médicos de ficarem ao final”, como havia ocorrido com 400 profissionais nos anos 90. Ou seja, enviá-los de volta à ilha-prisão era fundamental.
O sigilo das negociações era importante para evitar repercussão entre médicos brasileiros. São abundantes os relatos de prefeituras que demitiram médicos em todo o Brasil para contratarem os cubanos, cujo salário era pago pelo governo federal. De fato, de acordo com a Folha, “cerca de 1 600 municípios atendidos pelo programa têm as vagas ocupadas apenas por cubanos”.
O Mais Médicos, portanto, desde o início foi um programa de política externa, criado para 1) enviar dinheiro para a ditadura cubana e 2) criar um esforço de RP para mostrar que era positivo para o Brasil manter uma relação próxima com Cuba. O atendimento à saúde era apenas um potencial efeito colateral bem distante.
III.
A diplomacia médica de Cuba é conhecida. É um grande cartão de visitas da ditadura. Como os profissionais estão à mercê do regime, o governo dos Estados Unidos chegou a ter um programa especial para oferecer asilo político para eles. Sob o Cuban Medical Professional Parole (CMPP), criado em 2006, participantes de programas semelhantes ao Mais Médicos em países estrangeiros poderiam pedir asilo político nos EUA por meio de uma embaixada ou consulado americano. Segundo o Miami Herald, o programa beneficiou mais de 8 000 médicos cubanos.
O CMPP foi cortado em janeiro de 2017, no apagar das luzes do governo Barack Obama, como parte ainda não divulgada do restabelecimento de relações entre os dois países.
Não são poucos os relatos de médicos cubanos insatisfeitos ou revoltados com a missão atribuída pela ditadura. Dois exemplos:
Médicos cubanos no Brasil se revoltam com Cuba: “Você se cansa de ser um escravo” (The New York Times/UOL, 29.set.2017)
A gente se sentia explorado, diz cubano que saiu do Mais Médicos e ficará no Brasil (Folha, 21.nov.2018)
IV.
A saída de milhares de médicos cubanos pode prejudicar a saúde no Brasil, em especial a da população mais pobre? É certo que sim. O edital para substituir os médicos cubanos por (majoritariamente) brasileiros será plenamente bem-sucedido? Ainda não temos certeza.
O que nós temos certeza é de que dificilmente algo feito com um propósito pode atingir outro – e mais difícil ainda é corrigir o que nunca foi feito para dar certo.
***
Leia também: Falência do Ensino Médio comprova interesse partidário em cotas