ATÉ A REDAÇÃO DESTE TEXTO, o “Caso Para-Sar” era citado apenas 29 vezes em 12 anos de Twitter, a rede social que há uma década serve de fonte de inspiração aos pauteiros de todo o País. Na vigésima nona, uma enquete sem muito rigor científico revelava que nove em dez entrevistados não tinham a menor noção do que se tratava.
Em contextualização publicada pela Folha de S.Paulo sobre o Ato Institucional Número Cinco, a expressão é citada em referência a um caso “emblemático da anarquia crescente nas Forças Armadas“. Anarquia é justamente o que, nas palavras do candidato a vice de Jair Bolsonaro, justificaria um “‘autogolpe’ do presidente com apoio das Forças Armadas“. O que demanda entender o que aconteceu meio século antes.
“PARA” vem de “paraquedistas”. “SAR”, de “search and rescue“. Trata-se de um esquadrão de paraquedistas da Força Aérea Brasileira usado em operações especiais. Em abril de 1968, seus membros foram convocados para se infiltrarem nas manifestações estudantis do Rio de Janeiro.
O capitão Sérgio Carvalho tentou denunciar a ilegalidade da missão, mas seria ignorado. Dois meses depois, convocaram-no para uma reunião com o brigadeiro João Paulo Burnier. No encontro, tomaria ciência de um plano terrorista a ser executado pelos integrantes do esquadrão:
- Causar um pequeno número de mortes em explosões na loja de departamento Sears, num Citibank e na embaixada dos Estados Unidos;
- Explodir a Represa de Ribeirão das Lajes, deixando boa parte da população sem água;
- Causar um enorme número de mortes – por volta de 10 mil – explodindo o Gasômetro de São Cristóvão em horário de pico.
- Jogar a culpa da tragédia na esquerda mais radical, justificando assim um endurecimento sem precedentes contra opositores.
- Sequestrar e assassinar arremessando-os ao mar um total quarenta opositores, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek e Dom Hélder Câmara.
Numa segunda reunião, já com a presença de 40 membros do PARA-SAR, Burnier explicou aos inferiores que, mesmo em tempos de paz, deveriam “cumprir missões de morte“. E que as ordens não deveriam ser questionadas, mas simplesmente cumpridas.
Contudo, o capitão Sérgio Carvalho respondeu que aquilo era “imoral, inadmissível a um militar de carreira” e, após o acirramento de ânimos, deixou a reunião para fazer a devida denúncia ao ministro da Aeronáutica.
Carvalho preparou um relatório com todo o ocorrido. E 37 testemunhas concordaram que o texto era fiel aos acontecimentos. Mas Burnier encabeçou uma sindicância própria que findaria rasgando os testemunhos. O capitão seria transferido para Recife. Mais adiante, condenado a 25 dias de cadeia por desmentir o superior.
O caso foi denunciado pelo MDB em outubro de 1968. O Correio da Manhã, em artigo assinado pelo jornalista Pery Cotta – “A operação mata-estudante” – trouxe o escândalo na capa, mas o autor terminaria preso, com o jornal baixando as portas no início da década seguinte.
Todo o episódio faz parte do contexto que levou à assinatura do AI-5. Segundo a Folha, até agosto de 1968, explodiram 29 bombas em São Paulo, mas, diferente do que atualmente prega a a militância mais conservadora, catorze delas tinham origem em grupos radicais de uma direita militarizada.
A justificativa para o endurecimento, contudo, foram as acusações de prática de tortura por parte do Exército denunciadas pelo deputado Márcio Moreira Alves. O regime quis processá-lo, a Câmara não autorizou e, em represália, no 13 de dezembro de 1968, veio o quinto Ato Institucional, aqui resumido pelo jornal paulistano:
“Naquela noite, ficaram instituídos o recesso do Congresso por tempo indeterminado, a suspensão do habeas corpus em caso de crimes políticos e o recrudescimento da censura aos meios de comunicação. A oposição legal perdia a voz.”
Em artigo de 2012, o Observatório da Imprensa percebeu que o plano frustrado de 1968 parecia ter sido posto em prática em 1981, já após a Lei de Anistia. Mas, por obra do acaso, as únicas vítimas foram os próprios algozes.
“Em 1968, o plano de assassinato em massa foi barrado ainda na origem, mas 13 anos depois, em show dedicado ao Primeiro de Maio de 1981, no Riocentro, ele foi seguido e só não se consumou porque uma das bombas levadas ao local explodiu no colo do sargento do Exército que a carregava.”
Enquanto estas palavras são escritas, a dupla que lidera a corrida presidencial trabalha junto à opinião pública a ideia de que o Brasil não viveu uma ditadura. Essa versão viciada dos acontecimentos nasceu em contraponto a outra versão viciada, a de que os guerrilheiros caçados pelos ditadores eram democratas. Mas o heroísmo cantado pela torcida de ambos os lados não resiste a uma revisão mais imparcial.
O Brasil é uma democracia, ainda que jovem. Mesmo essa juventude, contudo, precisa ser celebrada. E, mais do que nunca, preservada.