O QUE OS MILICIANOS digitais de Jair Bolsonaro tentaram fazer com a palavra “articulação” é uma indecência. Porque o presidente da República sabe muito bem o significado da expressão. Para se eleger, articulou-se com evangélicos, forças policiais, mídia tradicional e alternativa, agropecuária e mercado financeiro, Lava Jato, entre outros grupos de pressão.
Havia também um caminho para uma articulação política. Bolsonaro nunca teve ideias econômicas, poderia ter deixado a agenda com o NOVO, mirando até mesmo uma coligação. Não havia o que prometer para a saúde, poderia ter deixado a missão com o PSDB, que tinha uma passagem histórica pelo Ministério da Saúde. Mas o bolsonarismo preferiu xingar João Amoêdo de esquerdista disfarçado, e de “socialistas fabianos” os tucanos.
Bolsonaro tanto sabe o significado de articulação que desde cedo se acompanhou de Onyx Lorenzoni, Paulo Guedes e Gustavo Bebianno. E não se furtou a entregar cargos ao DEM, ou mesmo ao PMDB.
Quando a medida é impopular como uma reforma da Previdência, não é errado um gestor oferecer alguma contrapartida, desde que a vantagem esteja dentro da lei. Parlamentares que se pautam pela educação, por exemplo, acharão vantajoso protagonizar trabalhos ligados à pasta. Mas o raciocínio serve a todos os temas: segurança pública, saúde, economia, agropecuária, direitos humanos, etc.
Outra forma é “moderar” temas sensíveis. Quando votaram uma redução da maioridade penal, por exemplo, vários limites foram postos na mesa, dos 10 aos 17 anos. O mais baixo a formar maioria era os 16 anos, e por isso foi escolhido. Mas era preciso também definir os crimes atingidos pelo novo recorte. Alguém percebeu que o porte de entorpecentes poderia desnecessariamente levar muito garoto da periferia à cadeia, pois nada garantia alguma relação direta com o tráfico. No que excluíram o trecho, o texto finalmente foi aprovado.
Durante toda a campanha, imprensa e eleitores perguntaram como um deputado federal que aprovara apenas dois projetos minúsculos em 28 anos conseguiria aprovar tudo de que um presidente precisa. Mas Bolsonaro escapava pela tangente. Porque se trata de um político de extrema-direita. Isso significa que jamais cederá nas ideias mais caras, nem mesmo no tom. Pois o extremista não acredita no diálogo, na negociação, na divergência, nem na maioria.
Como o radical que é, Bolsonaro precisa impor a vontade à força. Para isso, precisa destruir os freios que, numa democracia, livram a sociedade dos políticos autoritários. Não por outro motivo, o presidente da República ataca a imprensa, Congresso, Suprema Corte e tantas outras instituições.
É preciso falar claro: o que se inicia no Brasil é um projeto ditatorial. Ao desmoralizar a articulação política, Bolsonaro tenta um golpe chavista: lentamente enfraquecer as instituições até que não mais tenham força para contê-lo.
Os críticos começaram a alertar que Hugo Chávez transformaria a Venezuela numa autocracia ainda na eleição. O país só se consolidaria como uma ditadura em 2017, dezoito anos depois.
Bolsonaro não consegue disfarçar o desejo por poder semelhante. Para o “Mito”, não há problema em a Venezuela ser uma ditadura, mas uma ditadura de esquerda. Tanto que aplaude ditadores do Paraguai, do Chile, do Brasil e da Europa.
Isso também se aplica aos milicianos virtuais que agitam as redes sociais. Quando um documento da CIA atestou mais de uma centena de mortes de opositores no Governo Geisel, uma ala tratou a notícia como “fake news”, mas houve quem argumentasse que o general teria matado pouco, e que um banho de sangue maior impediria Dilma Rousseff de um dia presidir o Brasil.
É com tais forças que o Brasil lida em 2019.
Que essa “janela quebrada” tenha logo o vidro trocado. Sob pena de, diante da leniência local, destruírem o prédio inteiro.